terça-feira, 9 de março de 2021

Uns Braços, 1896

 

Uns Braços” (Várias Histórias, 1896); Machado de Assis


Eu concordo com o Inácio de que os braços são mesmo uma parte bonita de uma mulher. Braços e eu acrescento ombros; aproveitando, também, para confessar que eu adoraria ser o diretor de alguma companhia de dança. Aí eu poderia salvar o mundo pela arte, ao mesmo tempo que aproveito para namorar as bailarinas mais bonitas. Há menos peixes no mar do que beijinhos e mordidinhas que eu daria naqueles braços e ombros…

Não sou muito sociável e pouquíssimas vezes fui a um espetáculo de dança, mas sei como as dançarinas são bonitas. Aliás, acrescento ainda o pescoço feminino como mais um alvo de desejos. Acho que eu seria um diretor de dança vampiro também.


Lendo o conto “Uns Braços”, de Machado de Assis, fui tomado por uma sensação de déjà vu: este enredo adorável me é familiar. No colégio não pode ser. Seria uma lembrança agradável e lembranças agradáveis do colégio são poucas e ler um conto de Machado de Assis com certeza não está entre elas. Acho que deve ter sido na televisão, por meio de alguma obra cinematográfica.


Duas coisas: silêncio e hábitos. O silêncio na sociedade escondendo desejos transformando-se assim em acontecimentos que nos arrastam independentemente de nós: Inácio não entendeu o que aconteceu, Borges não entendeu o que aconteceu e com certeza D. Severina não teria mais sorte em explicar para a gente o que aconteceu. E o hábito, costume interessante: o pai mandando o filho morar com um amigo para que o filho tenha uma base segura para ganhar a vida na cidade grande. O elogio à vida em meio a cartórios, fóruns, advogados: burocracia brasileira e mais um caminho para jovens humildes poderem ter uma carreira promissora. Um pouco do mundo das cidades grandes naquele Brasil do século XIX.


D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges expetorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.

Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.

Um sonho, um sonho. Quando um martelo cai em nosso pé e quando recebemos uma notícia trágica é difícil mesmo acreditar que seja tudo um sonho. Mesmo assim, o desafio filosófico não desiste aqui facilmente. O que foi o dia de ontem? A nossa memória? A imagem daquela pessoa que era o ar o sol em nossa vida e agora é punhal no nosso peito? O que foi o plano perfeito no papel para a padaria ali na esquina? Vontade pouca de perguntar se é real ou sonho e mais de rogar mesmo para que seja tudo menos complicado.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Um Apólogo, 1896

 

Um Apólogo” (Várias Histórias, 1896); Machado de Assis


Mas é verdade verdadeira mesmo, o alfinete de cabeça grande é quem disse a coisa mais sábia neste conto. E podemos conferir isso fazendo uma viagem pelo mundo: um mosteiro franciscano no interior do Paraguai ou em um mosteiro budista em uma montanha do Tibet. O tempo a orar, duas ou três roupas simples e quase idênticas, refeições espartanas… E assim vai o dia, a semana e a vida. É uma fórmula muito antiga. E não é completa? Querer muito é querer sempre sempre mais e mais, oscilando e sufocando-se em frustrações quando não conseguimos e tédio quando conseguimos; querer menos é mais independência interior e também mais paz interior. Eis a resposta. E os “filhos das flores” (ou hippies) que ficam aqui na minha Rio Acima passando o fim de semana e feriados em uma das nossas inúmeras cachoeiras em barracas humildes, também não discordariam muito disso. Eis a resposta. Querer menos.


Mas querer menos até onde? Questão manhosa. Vou pedir ajuda a um dos textos mais profundos que encontrei na vida. É um decálogo escrito pelo professor e psicanalista Jurandir Freire Costa. Foi publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, mas em meu recorte eu não anotei a data. Presumo que deve ter sido em 2000 ou 2001, pois eu acho que era parte do suplemento “Mais!” dedicado à questão de como devíamos nos preparar para este nosso novo milênio. Em uma noite traiçoeira em que pensei muito em minha morte, o terceiro mandamento salvou-me a vida; mas aqui o que nos interessa é o sexto mandamento:

6. Só desejarás a justa medida das riquezas: primeiro, o necessário; segundo, o suficiente (Sêneca).”

Vou tentar lembrar-me disso muito muito até que torne-se hábito. Gostaria que a agulha também lembra-se disso e não sentisse inveja do novelo de linha.


“— Deixe-me, senhora.

Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

Mas você é orgulhosa.

Decerto que sou.

Mas por quê?

Lembro-me de ouvir, pelo rádio, um comercial do Banco Itaú a respeito de uma fórmula de economia: o ideal era chegar aos 30 anos com um ano de salário acumulado naquela parte da poupança que a gente só mexe em último caso. Isso foi há muitos anos atrás e agora com recessão e inflação em 2021, os números devem ter se alterado bastante. Lembro-me também, e acho que quem me lê também já deve ter ouvido falar pois é uma fórmula popular, de outra fórmula sobre economia: “A fórmula ABCD; A de alimento, B de básico, C de contornável e D de desnecessário”. O meu desejo de comprar os livros da Marilene Felinto e do Karl Popper, o mais cedo possível, estão dentro da letra A.

domingo, 7 de março de 2021

Cantiga de Esponsais, 1884

 

Cantiga de Esponsais (Histórias Sem Data, 1884)


Eu finalmente a escutei. Finalmente porque enquanto vocês perguntam ao Pai dos Burros, eu confesso que também fiquei curioso diante deste título exótico. Esponsais, esponsais, esponsais, esponsais… Quando montei esta antologia de contos consagrados de Machado de Assis (com ajuda das antologias organizadas por Deomira Stefani, M. Cavalcanti Proença, Ivan Cavalcanti Proença, Eugênio Gomes e a majestosa antologia da Editora Nova FronteiraSeus 30 Melhores Contos” publicada em 1987), este título atraía muito o meu olhar. Mas eu tinha que respeitar a ordem cronológica dos contos, pois queria crescer e amadurecer leitor juntinho com o Machado escritor.


A história do Mestre Romão é triste e eu não sei o que fazer a respeito.

Primeira coisa, toda racional, é tentar compreender os motivos deste fim triste. Se possível com distância fria e alguma ironia. Esta última ajuda muito quando tentamos enganar a tristeza. Assim, que tal o paralelo Mestre Romão e esposa; e Maxfield Parrish e a sua amante Susan Lewin? A hipótese de que sem o feminino a inspirar, o artista perde um dos motivos para tornar-se divino e também criar. Os leitores podem fazer careta dizendo que isso é “romantismo de século XIX”; bom bom pode ser, mas esta ideia ainda é popular entre as pessoas que gostam de arte.

Outra coisa que podemos fazer para decifrar/interpretar/consolar-nos não é alegre e isso talvez inspire mais respeito aí na leitora e no leitor do outro lado do monitor. Podemos misturar o conto de Machado de AssisCantiga de Esponsais” e o filme “Nunca te Amei” (“The Browning Version”, Greta Scacchi, 1994, Albert Finney, Matthew Modine, Mike Figgis, Terence Rattigan, Ronald Harwood e etc.). Nossa, como gostei e como achei bonito ver a figura do Andrew Crocker-Harris no final do filme ali no pátio da universidade! Coisa mais linda do mundo! Não penso na profissão de meus pais (que também foram professores) ou nas minhas frustrações amorosas (vou poupar os leitores ao não contar essas minhas histórias) em uma análise psicológica neste meu gosto pela figura de Andrew nas cenas finais do filme. Aqui não justifico e explico, apenas descrevo. A roupa preta-academia, a velhice-erudição, o silêncio-força, a tristeza interior invisível sinônimo de dignidade indestrutível

Mas …. Andrew foi infeliz em seu casamento longo demais e Mestre Romão foi feliz no casamento breve demais. Sim, eu sei; mas o alvo do desejo para mim aqui é a missão, a vocação, é o trabalho. E a humildade e dignidade que a acompanhariam e servir-lhe-iam de proteção. É isso que me interessou.


“— Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas...

Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo, e não concluídas. E então teve uma idéia singular: — rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.

Mestre romão teve um destino triste. Mestre romão amou uma vez há muitos anos, trabalhando foi chamado de “mestre” e no final achou sim achou sim a nota “lá”. A última mistura para não ser vencido pelo final triste de “Cantiga de Esponsais”, de Machado de Assis; a conclusão de “O Mito de Sísifo”, do Betinho Camus. Eu preciso imaginar o Mestre Romão feliz. Eu preciso. Sei que aqui não faço literatura, é apenas convites e testemunhos em um blog desconhecido em um cantinho desconhecido da internet. É pouco, mas continuo. Não. É pouco e continuo.