quarta-feira, 13 de julho de 2022

Lendas Brasileiras, Cascudo

 

Ao amanhecer, o chefe foi a cavalo, acompanhado por um pajem, à pedra indicada por Jaíra, mas só achou ali a roupa da infeliz criatura, com uma coroa de flores de maracujá do mato, em cima. O tenente soltou um grito de desespero, e ficou tão alucinado, que se lançou à corrente e não veio mais a terra.

A senhora branca soube do ocorrido, dirigiu-se a cavalo ao rio, onde só viu a roupa de Jaíra e o lugar em que sucumbira o esposo, e em prantos, a vociferar, amaldiçoou o rio em que cuspiu três vezes. Então as águas cavaram o solo e se esconderam no fundo da terra, os peixes ficaram cegos, a mata fanou-se e morreu!…

Contam que quem descia, de noite, à gruta de Itararé veria Jaíra, vestida de branco, com agrinalda de flores de maracujá, tendo ao colo o corpo do moço que morrera por ela. Às vezes, a sua sombra vinha à beira da estrada, matava os viajantes, tirava-lhes o sangue e com ele ia ver se reanimava o seu morto querido.”

(A Lenda de Ítararé)


Desta vez o amor fizeram mais um milagre. A madrugada surpreendeu, fora da sua furna, a salvadora do bandeirante. Despertando em sobressalto, levou as mãos aos olhos e com gestos desesperados tentou arrastar o moço para a caverna. Só então pôde vê-la e por ela conhecer os da sua tribo. Era pequenina e branca; cabelos longos, de um louro embaçado, caíam-lhe abundantes sobre as costas. Quanto mais clareava o dia, maior parecia a angústia da princesinha dos “tatus brancos” que tapava com as mãos os olhos gázeos, bracejava e gemia, incapaz de caminhar, às tontas, como inteiramente cega. O bandeirante olhou uma última vez para a triste selvagem, e fugiu da terra maldita.

- Eis aí, se não me traiu a memória, a lenda, lida em criança, da existência de uma tribo de canibais trogloditas, ou habitantes das cavernas, notívagos como as corujas.”

(Os tatus brancos)


LENDAS BRASILEIRAS – Luís da Câmara Cascudo.

Rede de Dormir, Cascudo

 

"Uma denúncia é a pergunta aos amigos hóspedes: "Dorme em cama ou em rede?"

Há, forçosamente, de ambas na residência ou no hotel do interior. Há poucos anos dizia-se, torcendo o lábio num esgar de desprezo: "É um homem cheio de luxos, de "bondades"; só dorme em cama!..."


"Uma condição essencial para antropologistas e etnógrafos é ser um bom poeta. Mesmo que não faça versos. Sem a poesia os seus trabalhos perdem, no plano da comunicação fiel e positiva, a graça verídica, a possibilidade justa, a idéia da vida, valendo, pela glacial explanação verídica, relatório de autópsia. Jamais darão, fora dos iniciados sonolentos que, em última análise renunciaram ao direito natural da vibração e do entusiasmo, nada mais do que um frio parecer de comissão de tomadas de contas em balanço de banco de crédito hipotecário. Não me diagam que a Ciência é nua e despida de ornatos e galanterias porque a Deusa Minerva, que devia entender dela, despojando-se das vestes alguma vez o fez para disputar um concurso de beleza."


"Ainda nos dias presentes há uma maioria alta de redes no quarto de dormir ao lado da cama bonitona. Serve para "o primeiro sono". Para "refrescar". Para "descansar". Depois vão fazer companhia à mulher. E muitos voltam para a rede, para "acabar o sono"."


REDE DE DORMIR - UMA PESQUISA ETNOGRÁFICA - Luís da Câmara Cascudo.

Antologia do Folclore Brasileiro, Cascudo

 

"Quero que saibam qual o motivo de se defenderem os índios de tal maneira. Hão de saber que eles são súditos tributários das Amazonas, e conhecida a nossa vinda, foram pedir-lhes socorro e vieram dez ou doze. A estas nós a vimos, que andavam combatendo diante de todos os índios como capitães e lutavam tão corajosamente que os índios não ousavam mostrar as espáduas, ao que fugia diante de nós, matavam a pauladas. Eis a razão por que os índios tanto se defendiam.

Estas mulheres são muito alvas e altas, com o cabelo muito comprido, entraçado e enrolado, na cabeça. São muito menbrudas e andam nuas em pêlo, tapadas as suas vergonhas, com os seus arcos e flechas nas mãos, fazendo tanta guerra como dez índios. E em verdade houve uma dessas mulheres que meteu um palmo de flecha por um dos bergantins, e as outras um pouco menos, de modo que os nossos bergantins pareciam porcos-espinhos."

(Frei Gaspar de Carvajal)


"Deve ser ainda mencionada aqui uma farsa, denominada SERRAÇÃO DA VELHA, indicadora de que já passou metade da quaresma. Essa brincadeira é organizada pelos soldados. Para a zombaria é escolhida, entre as moradoras da cidade, uma mulher já idosa, mas ainda coquete. Quando pois, é chegado o tempo, já essas mulheres estão preocupadas e temerosas de serem colhidas pela sorte. Faz-se uma figura recheada de palha, tão parecida quanto possível com a mulher em apreço, com trajes iguais aos que ela costuma usar, de modo a ser reconhecida imediatamente. Numa das mãos põe-se-lhe um rosário e na outra uma serra para indicar que o jejum quaresmal é cortado ao meio. Então a figura é posta numa padiola e, acompanhada pelos soldados com sabres desembainhados e archotes, é conduzida por quatro negros através da cidade, por entre a jubilosa gritaria dos negros e das crianças. Um grotesco mascarado abre o cortejo e, durante as paradas, lê o testamento da velha, composto com grande exagero, em que são vituperadas as suas vaidades da maneira mais inconveniente. Toda a tropilha aplaude furiosamente. Finalmente, chegando cortejo à residência da própria mulher, a figura é serrada em duas e queimada, o que sempre termina em pancadaria, porque os parentes da vítima se sentem igualmente ofendidos e procuram enxotar os indelicados visitantes."

(Johann Emmanuel Pohl)


"Começou a seguir um caminho muito longo. Lá adiante encontrou Acarajé e pediu-lhe que o ajudasse a preparar-se que lhe ensinaria o caminho. Ela o fez de boa vontade e ele indicou-lhe a estrada. Andou, andou e lá adiante encontrou umas pedras grandes com forma de gente que lhe pediram que ela os colocasse melhor. A menina com muito esforço conseguiu fazer e as pedras lhe ensinaram o seu caminho. Adiante encontrou Adjinacu (Cágado?) que também lhe pediu prestasse o serviço de auxiliá-lo no trabalho que estava fazendoe a menina prestou-se de boa vontade. Também Adjinacu mostrou-lhe o caminho. Muito adiante encontrou uma onça parida, a quem pediu que ensinasse o caminho e a onça lhe perguntou se não tinha medo de ser comida, repondeu que a comesse logo para acabar com a sua lida. A onça ensinou-lhe o caminho. Adiante encontrou um menino que batia feijão. Pediu que lhe ensinasse o caminho, e o menino disse que o fazia se ela o ajudasse."

(Raimundo Nina Rodrigues)


"A PIRANHA

Compõe-se de homens, mulheres e até crianças que formam uma grande roda, saindo ao meio dela um dos dançantes que executa passos variados ao tempo, em que os da roda girando à direita e à esquerda, cantam:

Chora, chora, piranha.

Torna a chorar, piranha:

Põe a mão na cabeça, piranha.

Piranha!

Põe a mão na cintura...

Piranha

Dá um sapateadinho.

Mais um requebradozinho...

Piranha

Diz adeus ao povo,

Piranha

Pega na mão de todos,

Piranha

A tal piranha faz o que se lhe manda, chorando, pondo a mão na cabeça, etc. Por fim conseguindo agarrar a mão de um qualquer dos da roda, puxa-o para o meio do círculo, tomando-lhe o lugar. Assim se continua."

(Antônio Americano do Brasil)


ANTOLOGIA DO FOLCLORE BRASILEIRO – Luís da Câmara Cascudo.

O Herói de Mil Faces, Campbell

 

“ “Lá”, disse ele, “vi a filha do rei, a mais bela mulher criada por Alá.” E passou a elogiar com entusiasmo a princesa Budur. “Seu nariz”, disse ele, “se assemelha ao gume de uma lâmina polida; as faces são como vinho tinto ou anêmonas cor de sangue; os lábios trazem o brilho do coral e da cornalina; o mel da sua boca é mais doce que o vinho envelhecido; seu sabor extinguiria o mais forte fogo do inferno. Sua língua é movida pelo mais alto grau do espírito e pela resposta pronta e engenhosa; o colo é sedução para todos que o vejam (glória Àquele que o construiu e lhe deu acabamento!); e, juntos, há também dois suaves e redondos antebraços; como disse dela o poeta Al-Walahan:
“Ela tem pulsos que, se as pulseiras não contivessem,
Sairiam de suas mangas em chuva de prata”. “ “



“ “Estrelas, escuridão, lâmpada, fantasma, orvalho, bolha,
Um sonho, um relâmpago, e uma nuvem:
Assim devemos olhar tudo o que foi feito” (Vajracchedika) “



Naqueles períodos, todo o sentido residia no grupo, nas grandes formas anônimas, e não havia nenhum sentido no indivíduo com a capacidade de se expressar; hoje, não há nenhum sentido no grupo – nenhum sentido no mundo: tudo esta no indivíduo. Mas, hoje, o sentido é totalmente inconsciente. Não se sabe o alvo para o qual se caminha.”


O HERÓI DE MIL FACES – Joseph Campbell.

(Tradução de Adail Ubirajara Sobral)