segunda-feira, 6 de setembro de 2021

As Fábulas, séc. 6 aC

VOCÊ VAI MUDAR

Fábulas”, Esopo; século 6 a.C..
[Tradução de Antônio Carlos Vianna.]

(Editora L&PM Pocket, 1997, Porto Alegre, Rio Grande do Sul; a edição minha é a impressa em 2002.)

Fábulas Completas”, Esopo; século 6 a.C..
[Tradução de Maria Celeste C. Dezotti.]
Maria escreveu uma emocionante pequena dedicatória que esta discretamente no final da edição e que acho bonito reproduzir aqui com destaque devido: 
A tradutora agradece aos professores Fernando Brandão dos Santos (Unesp – Araraquara) e Maria de Fátima Souza e Silva (Universidade de Coimbra), por terem lhe apresentado a edição crítica de Émile Chambry.

(Editora Cosac Naif, São Paulo, 2013. Apresentação de Adriana Duarte e ilustrações de Eduardo Berliner. A minha edição é a da segunda reimpressão, de 2015.)


Comprei primeiro a edição da editora L&PM há muitos e muitos anos, mas nunca a tinha lido completamente. Muitos e muitos anos depois, sabendo do desaparecimento da editora Cosac Naif e sabendo que era uma edição mais completa de uma obra importante para a compreensão do universo humano, comprei a versão deles também. E agora finalmente em 2021 li os dois livros. Apesar de toda a sofisticação da Maria para Cosac Naif, eu gostei muito da versão simples do Antônio para a LP&M de modo que; como ela é muito mais fácil de ser encontrada e comprada, quem me lê não vai ficar tão no prejuízo assim se ler ela apenas.

Antes de mais nada, o grande resumo da sabedoria das fábulas de Esopo: a vida é mudança. Numa hora rico, noutra pobre; numa hora pobre, noutra rico; numa hora saudável, noutra doente; numa hora você tem, noutra hora você não tem; numa hora você não tem, noutra hora você tem; numa hora você pensa que é de um jeito, noutra hora você percebe que é algo completamente diferente do que você pensava. A vida é mudança. Me parece que este é também o coração, com algumas diferenças, da sabedoria de "Os Livros Poéticos e Sapienciais" da minha Bíblia de Jerusalém. Mas ainda não planejei quando vou ler esta parte ou mesmo toda a Bíblia.

Minha leitura de “As Fábulas” de Esopo foi atenta e anotei algumas coisas; mas não tanto para fazer comentários muuuuito sofisticados. Afinal, basta entender a mensagem para mim e não decepcionar o Esopo; e não dirigir-me ao auditório da UFMG ou de Yale.

Antes de mais nada: cadê as mulheres? A participação delas como personagens é próxima do zero. 3 ou quatro vezes, se tanto. Na versão de Antônio Carlos Vianna é surpreendente a ausência do gato, mas na versão da Maria Celeste C. Dezotti esta encarnação da sabedoria e da malícia aparece. E já que falamos de quem tem sabedoria e malícia: e os macacos? Pois é, aparecem pouco muito pouco. Outro detalhe surpreendente. Das divindades gregas, quem mais aparece não é o todo-poderoso Zeus ou a bela-amorosa-popular Afrodite; o deus mais presente é Hermes. O deus protetor dos viajantes, dos comerciantes e também aquele que inventou a música. Hermes inventor da música? Acabamos de descobrir uma dívida que o sincretismo religioso brasileiro tem…

Não sou católico praticante, mas cresci na ética cristã e deste ponto de vista o mundo grego clássico visto pela sabedoria das fábulas de Esopo me pareceu cruel e frio. Mais frio que cruel, dado que também ali um coração bom e sincero vence no final. Mas é frio. Tem alguma coisa fria naquele mundo, mesmo com os elogios à amizade e à lealdade que há ali. E também humildade, a humildade é muito defendida também. Mas vamos às lições mais específicas. Acho que quem me lê pode gostar e aprender. Sei que você é inteligente e se eu for tonto ou muito tonto nos meus comentários, você vai perceber rapidamente sem risco.


A ursa cochichou para aquele viajante uma coisa que sabemos bem: é nas dificuldades que conhecemos os verdadeiros amigos. Pode descer da árvore falso amigo!

Combinou o cenário: o mar. Tantos fatos, tantas ondas, mas você não pode manter diante deles a mesma felicidade. Tudo muda. Veio o tempo bom, como veio a tempestade. O velho marinheiro acertou quando disse que alguma tristeza teríamos mesmo que sentir depois daquela boa pescaria. Destaque para o “teríamos mesmo que sentir”. Ah, velho marinheiro… 

A verdade vence nossos inimigos.

Não ofenda um fraco, pois o dia deste chega. O escaravelho pediu “por favor, poupa meu suplicante!”; mas a águia não teve clemência e devorou quem o escaravelho tentava proteger. Depois a águia se arrependeu. Duvida? Encontre uma águia e pergunte de quem ela lembra na hora de escolher o local para construir o seu ninho. Pois é… 

Como dito antes, a participação das mulheres nas fábulas de Esopo chama a atenção pela exiguidade; mas elas aparecem. E em uma das vezes, em uma das fábulas justamente mais poderosas e inesquecíveis. A história da mulher e do marido bêbado é realmente inesquecível. Inesquecível! Vença o vício o mais cedo possível. Do ponto de vista literário, nem parece uma fábula e sim um pequeno e poderoso conto.

Medroso, medroso, os corvos não estão aqui crocitando por você. Seja mais humilde, medroso! Acha mesmo que o mundo vai parar para ver o seu fim na guerra? Seja mais humilde, homem medroso! Pegue a arma sua que você jogou ao chão e volte para a guerra!

Aposto que quem me lê não sabia disso. A gaivota é uma ave marítima porque espera que o mar devolva-lhe a louça chique que ela perdeu. O morcego só sai a noite para comer porque ele fez tantas e tantas dívidas que se ele sair de dia, com certeza vai encontrar algum credor. E a sarça agarra na roupa da gente porque ela ainda espera encontrar os tecidos que ela encomendou. Aposto que você não sabia disso. Pois agora sabe.

O invejoso perde o que a natureza lhe deu.


Paixão é bom, Amor é bom; perder a cabeça assim é maravilhoso e divino. Ninguém nega, mas… Existem algumas coisas que você não deve abrir mão quando esse rio passar por você (Paulinho da Viola). Coisas da sua essência, captou? A dignidade, o autorrespeito e, se você for um leão apaixonado pela filha de um fazendeiro: dentes e garras. Repetindo: se entregue, mas não entregue tudo.

Um dos problemas mais clássicos da filosofia e da religião: o problema do mal. Na fábula do "Homem mordido por uma formiga e Hermes" encontramos uma das respostas mais incríveis, - e chocantes também -, para este problema. O título da fábula já nos dá uma pista... Eu sugiro que na próxima vez que você embarcar em um navio cheio de gente (ou para aproximar a fábula do nosso mundo: um vagão do metrô lotado de gente ou um ônibus lotado de gente), é bom você torcer para ninguém ali blasfemar contra a divindade. Os deuses são generosos, mas generosos nos dois sentidos. Acho que deu para entender… 

Mesmo o homem bom não hesita em tratar duramente quem o caluniou.
[Antônio Carlos Vianna para a moral da fábula “O Bandido e a Amoreira”.]
Assim, muitas vezes também os honestos por natureza, quando alguns os confundem com os vis não hesitam em agir com perversidade.
[Maria Celeste C. Dezotti para a moral da fábula “O Bandido e a Amoreira”.]

O cordeiro está certo, morrer pelas mãos de um sacerdote em oferenda ao deus em que ele acredita é mais digno do que morrer na boca de um lobo. Dignidade. Mantenha a dignidade até o fim. 

É, de todas as fábulas, a que mais me impressionou: "O Camponês e a Serpente".

Uma guerra é declarada. Quem é pobre tem nada e com nada foge para outra cidade, mas quem é rico vai querer ficar para proteger a sua casa luxuosa. Mais uma vez a humildade e o despojamento é defendido por meio de uma fábula que conta uma história dramática.

Lembro, quando bem criança, de minha mãe lendo e ensinando o que a fábula Bóreas e o Sol ensinava. E o que esta fábula ensina? Ah, eu não vou contar; mas em um mundo violento a lição da fábula é muito bonita.

Quando falamos que a Grécia Clássica nos ensinou a democracia, é bom observar sempre sempre quem era para eles os “cidadãos” e os “não cidadãos”. Pois é, pois é… Na fábula A camela que defecou no rio temos uma amostra da política da Grécia Clássica. E aqui nossa sensibilidade moderna, filha da Revolução Francesa, fica um tanto chocada. Se os cidadãos de uma cidade escolherem líderes ruins vão sentir no focinho algo muito ruim também...

Aposto que os leitores não sabiam que os elefantes têm medo dos leitões e que os camelos não se irritam com as pessoas injustas. Bom, agora vocês sabem.

Para Antônio Carlos Vianna é “A gata e Afrodite”, mas para Maria Celeste C. Dezotti é “A doninha e Afrodite”. Mas a moral da fábula é a mesma e ela também fere nossa sensibilidade moderna. Fere na parte que trata da nossa crença sobre o poder da educação de nos transformar: pois se você nasceu gata ou doninha não adianta a Afrodite escutar o seu pedido e transformá-la em mulher…

Sonhos. Não havia um tesouro, havia piratas como descobriu tragicamente aquele homem. Mas aquele homem havia enganado os deuses. Mas além de armadilhas ou previsões, os deuses gregos usavam os sonhos para conversar diretamente com os seus protegidos.

Mas quem botava os ovos de ouro? Uma galinha, Antônio Carlos Vianna? Ou uma gansa, Maria Celeste C. Dezotti? Na versão de Maria sabemos a origem do animal mágico: era um presente de... de… adivinha de quem? Ele mesmo, o deus Hermes. Mas em ambas as fábulas o fim é triste: o homem mata o animal porque cedeu à ambição. E o homem termina pobre.

Mais política nas fábulas de Esopo. Não era só para Adão que a solidão não era recomendado, mas para os deuses do Olimpo também. Mas Iaweh fez uma parceira na medida para Adão, no Olimpo nos tivemos um sorteio. Eram casamentos arranjados. Mas nasceu Amor entre o último casal a ser formado, justamente o casal onde não houve sorteio sendo unidos apenas porque não haviam mais opções. Era o Ultraje se casando com a Guerra. E eles se amaram muuuuito, como bem sabemos. Como bem sabemos. 

Para a Maria Celeste C. Dezotti era um “herói”, na versão do Antônio Carlos Vianna era um “semideus”. Enfim, na Grécia Clássica você podia ter em casa um altar e fazer oferendas não só para deuses do calibre de Atenas, Zeus, Apolo, Afrodite… Também haviam os semideuses e os heróis. Acho que aí temos o grupo do Hércules, por exemplo. Mas não sou especialista em mitologia grega. Enfim, aquele homem que gastava quase tudo em oferendas foi visitado pelo herói (ou semideus) que falou para ele que estava agradecido pelo carinho, mas era melhor ele parar antes de ficar pobre.

A fábula "As idades do homem" é uma delícia para quem, como eu, ama a filosofia. O humano é criado por Zeus puro e bom; e logo logo sua inteligência e ambição o coloca em problemas. 
Era uma vida curta e feliz, mas… Aconteceu durante uma tempestade de gelo. Sim cavalo, te abrigo do frio se você me der um pouco de seu tempo de vida. Sim boi, te abrigo do frio se você me der um pouco de seu tempo de vida. Sim cachorro, eu te abrigo do frio se você me der um pouco de seu tempo de vida. Resultado deste “vampirismo temporal” é que depois do tempo dado pelos deuses como ideal, os humanos (ou homens mesmo, na versão da fábula), tornam-se fanfarrões como cavalos, dominadores como os bois e quando chega na parte do tempo emprestado do cachorro os homens ficam insuportáveis e resmungões.

Com certeza as leitoras e os leitores sabem que qualquer música de Tchaikóvsky é a encarnação da beleza, assim como o sorriso da Kalki Koechlin é a própria luz do sol para a primavera. Mas vocês já viram o Juramento? É, o juramento. Vocês já viram o Juramento? Um homem manco a te levar a beira do precipício, após você mentir a um amigo… 
 – Mas ele tinha falado que só ia voltar daqui a trinta anos…
Mon ami, promessas são para os mortais… Os deuses fazem o que fazem e pronto. Você só não podia mentir para o seu amigo.

Lembro desta fábula em uma versão urbana (dois cachorros) e ilustrada belamente. Estava em um livro infantil. Mensagem política poderosa. Uma defesa da liberdade. Emocionante encontrar a versão original tantos anos depois. "O Lobo e o Cão". Não é preciso dizer muita coisa. A moral nem é tão legal, melhor mesmo é citar a última frase do texto; da fala do Lobo:
A fome é mais leve que a coleira!
Estados Unidos, Venezuela, liberalismo, socialismo, aquele emprego horrível que vai garantir o meu sonho daqui há alguns anos, minha família para cuidar, o medo, o medo disfarçado de responsabilidade, a responsabilidade, a sereia disfarçada de segurança, a segurança, o tempo que passa tão rápido…

Milhafre, milhafre, que loucura foi essa? Atacou quem nunca te fez mal? Que loucura foi essa? Na Grécia Clássica você tem que saber o que lhe cabe fazer, o que lhe cabe desejar.

A vida é instável, então é bom você saber onde se apoiar. Família, amigos: qual é a sua raiz? 

Ensina o meu amado Will Durant nada é tão aborrecido quanto a lógica e também nada é tão importante. Pois pois, as vezes a lógica sabe ser divertida e curiosa. Na versão da Maria Celeste C. Dezotti, as fábulas do Esopo foram agrupadas em ordem alfabética. Um critério como outro qualquer e seguido a risca. Pois pois, isso colocou juntinhos as fábulas “O passarinheiro e a perdiz” e “O passarinheiro e as pombas”. E daí? E daí que a moral das duas fábulas dialogam: não traia os parentes, a não ser que você seja uma pomba e já esteja sob o domínio de uma rede e de um patrão dominador.

A moral nos ensina que não devemos invocar os deuses em vão. Como, quando por exemplo, uma pulga morde o nosso dedão do pé. Mas a fábula me interessou porque é um exemplo de quem nem sempre a fábula e sua moral são próximas num discurso de coerência fácil: as vezes há ambiguidade e sofisticação no meio do caminho. A tentação é grande, mas as fábulas não merecem ser lidas com ligeireza leitores modernos e arrogantes!

Um encontro memorável: a fábula famosa “A raposa e o cacho de uvas”. O texto não é muito rico.

Um diálogo entre as fábulas “O lobo e o cão”, “O onagro e o burro” e “O rato silvestre e o rato caseiro”. O espectro que ronda por aqui é a liberdade. Não se deve ser insubordinado e nem inflexível (quando não for livre); a fome pesa menos que a coleira e a vida mais simples é mais segura do que uma vida luxuosa (ficar para defender a mansão ou fugir?). Saber ceder, não ser escravo dos desejos e não ser escravo dos luxos.

As fábulas “A serpente e a águia” (Maria Celeste C. Dezotti) e “O camponês e a águia” (Antônio Carlos Vianna). Diferentes, mas “parentes”. Diálogo, mas o espectro desta vez é o da gratidão. Ao escapar de uma serpente ou de um muro que parecia resistente e não era; esteja sempre pronto para agradecer e retribuir o favor. Faça o bem e a gratidão vai esperar por ti.

Outro encontro memorável: a fábula famosa “A tartaruga e a lebre”. O texto aqui, diferente de “A raposa e o cacho de uvas”, me pareceu mais rico. Poeticamente e filosoficamente. 
Cito um trecho que para mim é chave: “E a tartaruga, consciente de sua própria lentidão, não parou de correr.” 
O esforço compensa, esforço com consciência compensa ainda mais.

Vingança não é justiça, a fábula "O touro, a leoa e o javali" é violenta e trágica. É verdade. Mas também é verdade que há sim uma longa ponte/diálogo entre esta fábula de Esopo e a “regra de ouro” de Confúcio, a “regra de ouro” do Antigo Testamento, a “regra de ouro” de Jesus e o “imperativo categórico” de Immanuel Kant. A moral da fábula na versão de Maria Celeste C. Dezotti:
Esta fábula mostra que uma pessoa será medida com a mesma medida que ela usa para medir os outros.

Escute o que a raposa ensinou para o urso amigo dos homens. Não seja ambicioso, hipócrita e nem presunçoso. (Mas que urso era aquele, héin…)

Depois de um urso sem noção, um velho sem noção. Invocar a Morte para que… ela carregasse a lenha que estava pesada demais! Ah, essa foi ótima! Todo mundo ama a vida. Parabéns ao velhinho sem noção.

E na última fábula que selecionei, - “Zeus e o tonel de bens” –, o diálogo é com o mito “A caixa de Pandora”. Que os bens voem em direção aos deuses ou com os males que voem se espalhando pelo mundo dos humanos por causa de nossa curiosidade irresponsável; sobra sempre a esperança a alimentar os nossos corações.
Então, leitora e leitor: você acredita?

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