sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Muito Bacon e um pouco de Leibniz

 

Muito Bacon e um pouco de Leibniz


Em meu antigo blog um resumo que fiz da Teoria dos Ídolos, de Francis Bacon, ajudou uma pessoa em seu trabalho. Era uma jovem, mas não sei se universitária. E o episódio faz muito mas muito tempo mesmo. Mais de 10 anos. Nem lembro do nome dela, minha vaidade quis apenas guardar que ela agradeceu. Mesmo porque ninguém comentava em meu blog e o comentário dela me deu um susto tremendo. Bom, reencontrei o texto e achei legal publicá-lo aqui também. Acrescentei algumas coisas para tornar o texto melhor.


Bryan Magee, no capítulo dedicado a Leibniz em História da Filosofia, diz que a distinção de Leibniz entre “verdades de fato” e “verdades da razão” (em linguagem moderna, respectivamente, “analíticas” e “sintéticas”) já foi considerada a teoria em que, se, pelo menos, ela for bem compreendida por uma aluna ou aluno; o estudo deste em filosofia terá valido a pena. Acho razoável, mas pessoalmente eu escolheria a Teoria dos Ídolos, de Francis Bacon. Está em sua obra-prima Novum Organum, como ferramente para as novas ciências que vai nos ajudar a construir um mundo mais feliz. O livro não é muito difícil de ler e quando a leitura me levava aos trechos mais citados das diversas Histórias da Filosofia que eu tinha, minha vaidade intelectual agradecia muito. Então vamos logo ao que interessa. Eu tenho certeza que você vai achar útil.

A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos.




IDOLA TRIBUSÍdolos da Tribo / Raça (Erros inerentes à espécie humana).

Esperar mais ordem nos fenômenos naturais do que se encontra realmente. Acreditar demais demais em nossos sentidos, como visão, olfato… Conhecimento dado pelos sentidos é parcial. Imperfeições do intelecto (uma sementinha para Kant, que homenageia Bacon logo no início da sua obra-prima A Crítica da Razão Pura). Imagina paralelismos, correspondências, relações… Tendência verificacionista (só tem olhos para aquilo que confirma o que você quer acreditar). Acreditar naquilo que lhe é conveniente.

O trecho famoso merece toda a fama que tem (o trecho do “espelho”), mas Bacon é mais didático justamente nas frases anteriores ao trecho.

É falsa a asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas. Muito ao contrário, todas as percepções, tanto dos sentidos como os da mente, guardam analogia com a natureza humana e não com o universo.



IDOLA SPECUS” Ídolos da Caverna (Erros inerentes às particularidades de cada pessoa).

Referência à parábola da caverna da obra A República, o trecho mais famoso de Platão senão de toda literatura filosófica ocidental. Bacon particulariza a metáfora criada pelo grego para indicar a dificuldade para conhecer além das sombras da verdade. Preconceitos pessoais. A “caverna” de cada indivíduo. De sua formação particular. Tomar o seu mundo como sendo a realidade verdadeira. Procurar o conhecimento no seu mundinho e não no mundo maior, comum a todos. A verdade não tem partido, não sendo sua e nem minha; para ser justamente nossa. Imagino o que Francis Bacon diria sobre a Internet e o celular, o logaritmo que prende em vez de justamente libertar. Imagino o que Francis Bacon diria sobre o Brasil do dia 28 de outubro de 2022.

Os ídolos da caverna são os dos homens enquanto indivíduos. Pois cada um – além das aberrações próprias da natureza humana em geral – tem uma caverna ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natureza: seja devido à natureza própria e singular de cada um; seja devido à educação ou conversação com os outros; seja pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram; seja pela diferença de impressões segundo ocorram em ânimo preocupado e predisposto ou em ânimo equânime e tranquilo; de tal forma que o espírito humano – tal como se acha disposto em cada um – é coisa vária, sujeita a múltiplas perturbações, e até certo ponto sujeita ao acaso. Por isso, bem proclamou Heráclito que os homens buscam em seus pequenos mundos e não no grande ou universal.



IDOLA FORI” “Ídolos do Foro / Mercado / Praça Pública (Erros inerentes à linguagem)

Tirania das palavras. Vinda da ambiguidade das palavras. Os humanos têm uma acentuada tendência a confundir o que se diz com a realidade. Dos quatro ídolos, este é o mais incômodo. Basta um erro, uma inequação no uso das palavras para o intelecto inteiro ficar perturbado e corrigir depois é quase impossível. O que hoje chamados de “hipótese ad hoc”: hipóteses cogitadas e introduzidas nas teorias em perigo, com o único objetivo de salvá-las das críticas e refutações. Palavras são violentas. Tínhamos que ser honestos e claros; e simplesmente parar de mentir.

Aqui a melhor citação não provém de Bacon, e sim de alguém mais sábio e poético: a Raposa, a amiga do Pequeno Príncipe:

Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás mais perto...



IDOLA THEATRI” Ídolos do Teatro, das Escola (Erros inerentes às escolas de pensamento)

Sistemas de pensamento tradicionais. Regra cega, antiga, ocupando o lugar do juízo pessoal. Representações sistemáticas da realidade que não são mais adequadas. Seguir uma ideologia de forma dogmática. Falsa consciência. Falsas demonstrações. Invencionices especulativas. Erros provenientes da fé cega, do desleixo e da tradição. O mundo descrito por Platão é o mundo construído por Platão, e não o mundo. Acreditar em alguma escola de pensamento é importante, mas é preciso conhecer outras escolas e não ser um fanático. Ser sempre um aluno curioso querendo sempre descobrir.

Ademais, não pensamos apenas nos sistemas filosóficos, na sua universalidade, mas também nos numerosos princípios e axiomas das ciências que entraram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da negligência.

Mas aqui também podemos e devemos pedir a colaboração de outro autor inglês: minha primeira paixão intelectual: o queridão Bertrand Russell em Ensaios Céticos:

O que é necessário não é a vontade de acreditar, mas o desejo de descobrir; que é justamente o oposto.




Segue aqui mais três trechos de Novum Organum que eu considero importantes:

Pois não há paridade entre o risco que se corre ao não se tentar a prova e o proveniente do insucesso. No primeiro caso nos expomos à perda de um imenso bem; no segundo, há uma pequena perda de trabalho humano. Assim, tanto do que se há dito como do que não se disse, parece subsistirem grandes motivos para que o homem destemido se disponha a tentar e para que o prudente e comedido adquira confiança.


Todavia, a investigação natural se orienta da melhor forma quando a física é rematada com auxílio da matemática. E então, que ninguém se espante com as multiplicações e com os fracionamentos, pois, quando se trata com números, tanto faz colocar ou pensar em mil ou em um, ou na milésima parte ou no infinito.


Também devem ser coligidos os cânones a respeito de predomínio. É o caso seguinte: quanto mais comum é o bem que se almeja tanto mais forte será o movimento; assim, o movimento de conexão que diz respeito à inteira comunidade do universo, é mais forte que o movimento de gravidade, que diz respeito apenas à comunidade dos corpos densos. Ou ainda: os apetites do bem privado não prevalecem na maioria dos casos sobre os apetites do bem público. Que assim também fosse nos assuntos civis!

Gostaram? Francis Bacon é bom, não é? Ainda vou ler e escrever a respeito do seu livro Ensaios. Mas antes de ir embora, um pouco do citado Leibniz e a sua celebrada teoria sobre verdades de fato e verdades da razão. Vocês podem ter ficado curiosos.

A – Um dos meus vizinhos são uma família, composta por quatro pessoas e no terreno deles há duas casas e muitos pés de mandioca.

B – Eu tenho uma bola redonda e triangular.

Na primeira afirmação, como você procederia para verificar a falsidade ou veracidade? Teria que me visitar, conhecer os meus vizinhos, ver se são quatro pessoas, ou mais ou menos, e se mesmo tem vários pés de mandioca plantados… Teria que “ver para crer”, teria que ir lá, teria que experimentar, agir, fazer um gesto. Ação, experimento, sentidos. No segundo caso, descontando a curiosidade; pela estrutura lógica da declaração você percebe que é um absurdo e que não pode ser verdade.

É interessante observar que no dia a dia você vai precisar estudar muito, ler, conhecer muitas coisas para não acreditar na quantidade de porcarias que são divulgadas nos grandes meios de comunicação. Além de ter um ensino formal sofisticado, você não pode ser preguiçoso. É difícil. Eu, por exemplo, acho difícil demais. Mas Leibniz e Bacon nos fornece duas peneiras poderosas para nos proteger. Espero que você as ache úteis.


POST SCRIPTUM Uma notinha acadêmica

Esqueci de um detalhe: as fontes. O que eu li sobre Francis Bacon antes de ler o seu Novum Organum. O que, inclusive, explica os diferentes nomes dos ídolos.

- Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1998.

- História da Filosofia, de Bryan Magee.

- O texto introdutório da coleção Os Pensadores, do volume dedicado a Francis Bacon. A tradução e notas é do José Aluysio Reis de Andrade e provavelmente o texto introdutório também seja dele.

- Respeito, Senhores do Parlamento; texto de Roberto Romano. Folha de S. Paulo, mas não anotei a data.

- História da Filosofia, da coleção Os Pensadores edição de 1999 (aquela azul escura, em da parceria Abril Cultural e Folha de S. Paulo). O volume especial, de autoria de Bernadette Siqueira Abraão.

- História da Filosofia, de Antiseri e Reali.

A parte do Leibniz vem de História da Filosofia, de Bryan Magee

Lamento que as fontes não sigam as regras da ABNT (Agência Brasileira de Normas Técnicas), mas daria muito trabalho procurar tudo e eu sou preguiçoso.

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