quarta-feira, 10 de março de 2021

A Cartomante, 1896

 

A Cartomante” (Várias Histórias, 1896); Machado de Assis


Tem, tem mais coisa nesse trem. Ou para misturar expressões populares de Minas Gerais e a atmosfera dos romances de mistério de Agatha Christie: há mais coisa entre um vagão de trem e outro vagão de trem do que costumamos sonhar.

Antes de mais nada nos perguntamos se o atraso de Camilo ao encontro com Vilela fez alguma diferença para o desfecho trágico. Em se tratando de paixão, é possível. Mas aqui já começam os detalhes e sentidos que escapam por entre os dedos da nossa razão: atraso por causa da cartomante ou por causa da carroça no meio da rua? Em linguagem da filosofia técnica: qual foi a Causa Primeira ou, pelo menos, a Causa Eficiente?(*) E quem mandava as cartas anônimas? “Bobagem! Olhe novamente como a Rita comportava-se. Praticamente uma garota ingênua, apesar de sua idade! Acha que ela seria capaz de disfarçar por tanto tempo assim?”; alguma leitora ou leitor mais vivido e experiente poderia observar. E eu dou a minha contribuição pessoal à investigação: “se formos pelo caminho da magia da cartomante (não podemos esquecer, afinal de contas, o título que o autor decidiu dar ao conto), o meu palpite é a hora das passas e do pagamento de Camilo. Não posso ignorar que o Mestre das Sutilezas e Ambiguidades; - que é o nosso Machado de Assis -; quando escreve “Os olhos da cartomante fuzilaram” queria dizer mais coisa do que simplesmente descrever uma cartomante gananciosa. Não, ela se sentiu humilhada e ofendida pela generosidade mal calculada e ainda por cima prejudicada por aquela fala inicial do Camilo. O segredo esta ali.


Os olhos da cartomante fuzilaram.”

Os olhos da cartomante fuzilaram.”

Os olhos da cartomante fuzilaram.”

Os olhos da cartomante fuzilaram.”

Tem que ser aqui, tem que ser neste instante. Esse é o momento chave de mais um conto maravilhoso de Machado de Assis. É o décimo dos contos que escolhi para ler e é mais uma joia.


Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

Aconteceu em “Uns Braços” e aconteceu novamente em “A Cartomante”. Fico preocupado, não só porque a atmosfera mágica misteriosa do segundo conto ainda está presente aqui no meu quarto, mas porque a minha antologia de contos do Machado de Assis obedece a ordem cronológica e a ordem alfabética também. Racionalidade deveria ser imparcial, mas… Assim sendo, “Uns Braços” e logo após “A Cartomante”… Machado quer mesmo me dizer algo Inácio, Camilo, Rita. Mesmo D. Severina e Vilela, apesar de ser personagens de ação, “poderosas” mais do que os outros poderíamos dizer; também estão no mesmo barco levado pela correnteza dos acontecimentos indiferentes aos apelos humanos. De que adiantaria Inácio abrir os olhos naquele domingo e/ou Camilo acreditar? E o que eu, Aldrin, posso fazer? O que você, que me lê agora, também pode fazer? Somos levados pelo grande rio...


* Causa Primeira, Causa Eficiente. Alô alô, Aristóteles e a turma do Positivismo Lógico! O que colocou todo esse universo em movimento? Isso lembra-me quando o ateísmo estava na moda e eu participava de todas aquelas discussões sobre a existência de Deus no Orkut e FaceBook. 2009, 2012, por aí. Sou agnóstico, então, teoricamente, eu devia ser o mais calado e humilde durante aquelas discussões; mas a agressividade e arrogância daqueles teístas animavam-me a participar das discussões. Eu não incomodava os ateus porque julgava eles uma minoria inofensiva. Eu podia ser educado e era mesmo durante as discussões, mas acho que eu era tão arrogante quanto todos eles. Mas apesar do caráter predominantemente lúdico para mim daquelas discussões eu prestava bem a atenção. Uma afirmação que era relativamente comum que os teístas faziam era que “o infinito não é real”. Aparentemente infinito é bom para o ateísmo. Bom, eu não sou aluno de filosofia ou teologia; mas posso imaginar que se o infinito existisse seria um problema grande saber onde Deus dorme depois de trabalhar. Dizer que Deus poderia morar “antes do infinito” ou “depois do infinito”, poderia parecer poético demais para aqueles teístas tão preocupados em serem racionais. Obviamente que aqui, como em todos os lugares e ocasiões, e em todos os tempos; são os poetas que detêm toda a verdade:

Tão correto e tão bonito

O infinito é realmente

Um dos deuses mais lindos

[Eduardo Dutra Villa Lobos, Marcelo Augusto Bonfá, Renato Manfredini Júnior e Renato da Silva Rocha; o grupo musical a Legião Urbana. A cantora Zélia Duncan é a intérprete que fez a versão canônica de “Quase Sem Querer”. A escutem mais brevemente possível! É uma gravação feita a partir de um show da Zélia. Começa com “Faaaaalaa...”.]

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